Grande Sertão | Crítica com spoiler

 


    Seria um erro imperdoável começar esta crítica sem uma contextualização essencial. Afinal, "Grande Sertão: Veredas" é uma obra que transcende o simples entretenimento, desafiando o público a mergulhar em um universo complexo e profundo. O filme de Guel Arraes, uma ousada releitura do clássico de Guimarães Rosa, pode facilmente ser mal-entendido por parte do grande público. Por isso, antes de julgar, é crucial compreender o que está por trás dessa nova adaptação. E mesmo que, após ler este texto, você ainda não goste do filme, ao menos terá argumentos sólidos e não cairá nos motivos errados.

    O diretor Guel Arraes (O Auto da Compadecida) apresenta uma releitura da aclamada obra de Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas". A releitura é uma reinterpretação da obra original, adaptando "Grande Sertão" para um novo contexto. Em vez de se passar no sertão entre os Estados da Bahia e Minas Gerais, a nova trama se desenvolve em uma favela cercada por muros, isolada no meio de um sertão. Todos os elementos criados por Guimarães Rosa estão presentes, mas reimaginados e adaptados para situações da realidade atual, mesmo que o longa tenha um tom distópico.


    Com o roteiro de Jorge Furtado, somos apresentados a Riobaldo (Caio Blat), narrador desta grande história que se passa numa periferia brasileira chamada "Grande Sertão". A luta entre policiais e bandidos assume ares de guerra e traz à tona questões como lealdade e traição, vida e morte, amor e coragem, Deus e o diabo. Riobaldo entra para o crime por amor a Diadorim, um dos bandidos, mas nunca tem a coragem de revelar sua paixão.

    Um dos grandes trunfos do longa dirigido por Arraes é a releitura que ele e Jorge Furtado dão à trama de Guimarães. Jogar a trama no contexto das favelas foi uma boa decisão para o desenvolvimento da história, ainda mais quando observamos elementos reais dentro da narrativa. A comunidade do filme, cercada por muros, lembra muito a favela da Maré, no Rio de Janeiro. A relação entre o crime e a polícia também é muito interessante e bem colocada, mostrando que as duas antíteses não passam de faces da mesma moeda.


    As referências também adquirem significados simbólicos, carregados de denúncia. Por exemplo, Zé Bebelo (Luis Miranda), o comandante da polícia, é retratado com toda uma iconografia fascista, revelando um jogo de poder em que ele usa a corporação como trampolim para sua carreira política. Isso destaca uma realidade inquietante de nossa sociedade: nas eleições de2022, 776 candidatos eram ligados à Polícia Militar, conforme reportagem do OGlobo. Como Zé Bebelo, muitos policiais buscam usar sua posição na corporação como uma alavanca para a candidatura política.

   Essa estratégia não apenas ilustra a relação entre poder e política, mas também lança luz sobre a maneira como a instituição policial pode ser instrumentalizada para alcançar objetivos pessoais. Assim como na ficção, na vida real, vemos policiais buscando se beneficiar da influência e da estrutura da corporação para avançar em suas carreiras políticas.



    O destaque, sem sombra de dúvida, fica para o ator Eduardo Sterblitch, que interpreta o lunático Hemógenes. A insanidade e o cinismo que ele dá ao personagem são notáveis e chamam a atenção para o excelente trabalho do ator.

    A abordagem do diretor ao utilizar prosa nos diálogos do filme se destaca como uma escolha ousada, porém eficaz. Essa decisão contribui para uma atmosfera envolvente na trama, apesar de potencialmente causar estranheza para o público não acostumado com esse estilo. No entanto, um ponto de atenção são os momentos de exagero na interpretação de Caio Blat em prosa nas falas de Riobaldo. Embora possa ser uma escolha deliberada para conferir um tom teatral à sua performance, esse exagero ocasional pode necessitar de um equilíbrio melhor. Ainda que seja intencional, o exagero excessivo pode comprometer a naturalidade e a credibilidade da interpretação. Assim, é importante dosar esses momentos para evitar que se sobreponham à qualidade geral da atuação e da narrativa.


    Embora o filme comece com um bom ritmo, gradativamente perde o fôlego, deixando a trama arrastada ao longo das quase duas horas de duração. Enquanto as cenas de tiroteios se destacam, as de combate corpo a corpo deixam a desejar com lutas mal coreografadas.

     Apesar do sucesso na execução dos diálogos em prosa, em alguns momentos eles não funcionam e parecem pedantes. O problema não está na prosa em si, mas sim nas falas. Isso se deve, em parte, à forma como os atores Caio Blat e Luisa Arraes conduzem seus personagens. Mesmo sendo casados na vida real, falta química entre eles e a tensão necessária para um amor visto como proibido por Riobaldo, mesmo que nada naquela sociedade o declare como tal.



    "Grande Sertão" é um filme polêmico que, embora provavelmente agrade a alguns, desagradará a outros. Isso se deve em grande parte ao seu estilo em prosa, o desconhecimento do papel da
 releitura e ao desconhecimento da obra original. Isso pode levar alguns a interpretarem o filme como apenas uma tentativa de ser "lacrador", quando, na verdade, Guimarães Rosa já explorava essas questões de maneira significativa desde a publicação do livro em 1956.

 

Nota: 6/10