Já Vivemos no Mundo Cyberpunk


    De Volta Para o Futuro e Os Jetsons previam um futuro repleto de carros voadores, videochamadas e outras conveniências de um mundo futurista. Muitas dessas idealizações, tanto no filme estrelado por Michael J. Fox quanto na animação da Hanna-Barbera, se concretizaram em parte. No entanto, nenhuma obra de ficção científica chegou tão perto de "prever" o futuro como o gênero Cyberpunk.

     O Cyberpunk surgiu nos anos 80, durante o auge do neoliberalismo promovido pelos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Esse período foi marcado pelo aumento da desigualdade social e pela crescente influência das grandes corporações, o que fortaleceu a estética sombria e os temas distópicos característicos do movimento. Hoje, quatro décadas depois, estamos cada vez mais próximos da realidade imaginada por autores como William Gibson, Philip K. Dick e Neal Stephenson. Embora ainda não vivamos em um mundo exatamente como o descrito nessas obras, o cenário atual exibe vários traços que o aproximam da distopia Cyberpunk.

    Vivemos em um mundo dominado pelas Big Techs do Vale do Silício, as cinco grandes empresas conhecidas pelo acrônimo GAFAM: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. Além delas, outras gigantes como Instagram, TikTok e Netflix também buscam dados de seus usuários, que, com apenas um clique, aceitam fornecer inúmeras informações pessoais. Empresas como a Clearview AI já utilizam reconhecimento facial de forma controversa, coletando bilhões de imagens da internet sem consentimento para criar uma vasta base de dados. A vigilância em massa, um tema clássico no Cyberpunk, já faz parte do nosso cotidiano.

    As redes sociais, que inicialmente serviam apenas para interação, tornaram-se grandes ferramentas de coleta de dados e manipulação. Muitos influenciadores promovem idealizações de vidas que, para grande parte das pessoas, são inalcançáveis, enquanto as empresas se aproveitam desse conteúdo para vender propaganda e moldar a realidade. Mas talvez o uso mais perigoso seja o político, em que as redes sociais têm influenciado a vida pública em uma escala assustadora. A disseminação de fake news e o uso de algoritmos para direcionar conteúdos específicos para públicos-alvo são práticas que reforçam bolhas informacionais e criam realidades alternativas para diferentes grupos.

     Em 2018, o escândalo da Cambridge Analytica, envolvendo o Facebook, mostrou como os dados dos usuários foram utilizados para manipular o eleitorado e influenciar resultados políticos, como o Brexit e a eleição de Donald Trump. Esse tipo de manipulação é uma característica central nas distopias Cyberpunk, onde grandes corporações e governos controlam a informação e as massas de forma discreta e eficaz. Isso também nos leva a pensar nas smart cities, que, embora promovam conectividade e conveniência, também aumentam a vigilância por meio de câmeras e dispositivos conectados, monitorando cada movimento.

     As Big Techs não se limitam a prever comportamentos nas redes sociais; elas também buscam dados fora delas. Os wearables, ou "dispositivos vestíveis", como pulseiras fitness, smartwatches e óculos de realidade aumentada, são capazes de coletar informações detalhadas sobre a saúde e os hábitos dos usuários. A coleta de dados biométricos, como batimentos cardíacos e padrões de sono, é um campo vasto para exploração por parte das corporações. O uso de dispositivos como o Neuralink, de Elon Musk, que busca conectar o cérebro humano à internet, nos aproxima ainda mais de um mundo onde as fronteiras entre o orgânico e o digital se dissolvem, um tema central no universo Cyberpunk.

     Imagine a seguinte situação hipotética: você está usando um relógio de última geração que pode prever um infarto iminente. A empresa, em vez de alertar o usuário, vende esses dados para seguradoras, que podem negar cobertura a pessoas com esse perfil. Isso pode parecer exagero, mas já vemos iniciativas como o uso de inteligência artificial por empresas de seguros para prever riscos e ajustar prêmios, muitas vezes sem transparência ou controle dos usuários.

    Essa realidade já se manifesta em questões mais simples. No Brasil, a popularização do Pix revolucionou as transações financeiras. Hoje, até vendedores ambulantes precisam de smartphones para aceitar pagamentos digitais. A tendência de deixar de lado o dinheiro físico em favor de meios digitais de pagamento, como carteiras digitais e criptomoedas, é uma mudança que se alinha à visão de um futuro Cyberpunk, onde transações são completamente monitoradas e controladas pelas corporações e governos.

    Outra faceta do Cyberpunk que já está presente em nosso cotidiano é o aumento da desigualdade social. A pandemia de COVID-19 escancarou essa disparidade. Enquanto grandes empresas como Amazon, iFood, Uber e Magazine Luiza lucraram com o aumento da demanda por serviços online, milhões de brasileiros enfrentaram a fome. Em 2022, mais de 33 milhões de pessoas no Brasil viviam em insegurança alimentar, contrastando com o aumento dos lucros das grandes corporações. Em distopias Cyberpunk, essa concentração de poder e riqueza nas mãos de poucos, enquanto as massas vivem na miséria, é uma constante.

     O mundo Cyberpunk não existe apenas nas páginas dos livros ou nas telas dos filmes. Estamos, de fato, nos aproximando cada vez mais desse cenário, em que grandes corporações dominam a economia, a tecnologia e até mesmo aspectos íntimos de nossas vidas, como nossa saúde e hábitos pessoais. Somos vigiados, monitorados e, muitas vezes, manipulados. Aceitamos tudo isso sem questionar as implicações de nossos contratos digitais, seduzidos pela conveniência que nos é oferecida.

    Apesar de tudo isso, como não vivemos a estética visual do movimento Cyberpunk — cheia de neons, arranha-céus decadentes e metrópoles sujas —, muitos acreditam que estamos em um mundo próspero e livre. No entanto, a realidade é que vivemos em uma jaula invisível, em um sistema que oferece apenas a ilusão de liberdade, enquanto nossas vidas são moldadas por forças muito além do nosso controle.