Ainda Estou Aqui | Crítica

Quando a história é silenciada, o cinema se torna sua voz mais poderosa.

    O cinema, com todas as suas liberdades criativas, funciona como um grande livro de história. Inúmeros filmes já foram produzidos sobre diferentes períodos históricos ao redor do mundo, e o Brasil não foge à regra. No cinema nacional, há uma diversidade de obras que retratam momentos marcantes da nossa trajetória, mas o período que talvez receba maior destaque é o da ditadura militar brasileira (1964-1985). Os chamados "anos de chumbo" inspiraram mais de 50 filmes, sem contar curtas e documentários.

    Esse período ganhou mais uma representação marcante com o lançamento de "Ainda Estou Aqui", dirigido por Walter Salles. Baseado no livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva, o longa é protagonizado por Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro e um elenco de peso. A história se passa no Rio de Janeiro, no início dos anos 1970, em pleno endurecimento da ditadura. A trama acompanha a família Paiva – Rubens, Eunice e seus cinco filhos –, que vive em uma casa de portas abertas, cercada de amigos e alegria. Até que, em um dia que muda tudo, Rubens é levado por militares à paisana e desaparece. Eunice, em sua busca incessante por respostas, é forçada a reinventar seu caminho e a sustentar a família enquanto enfrenta as dores do silêncio e da ausência.

    Walter Salles constrói essa narrativa com habilidade e sutileza, utilizando elementos cinematográficos que mexem profundamente com a percepção do espectador. Os primeiros 30 minutos são um primor técnico e narrativo, remetendo a obras como "Zona de Interesse" (2023), de Jonathan Glazer, e "Tubarão" (1975), de Steven Spielberg. Assim como Glazer evoca tensão com sons e imagens sugestivas em vez de explícitas, e Spielberg usa música para anunciar o perigo, Salles insere sinais discretos que criam um clima de constante apreensão. Embora vejamos os Paiva em momentos felizes, os sons de helicópteros, soldados na praia e a voz de Cid Moreira no jornal são lembretes de que o perigo está sempre à espreita. Sabemos, desde o início, que Rubens Paiva sairá de casa e não voltará, mas a forma como Salles constrói essa inevitabilidade é devastadora.

    A direção de fotografia, assinada por Adrian Teijido, é um espetáculo à parte. A casa dos Paiva, inicialmente cheia de luz e vida, se transforma completamente com a chegada dos agentes do governo. À medida que as cortinas são fechadas, a luminosidade desaparece, refletindo a ruptura que a ditadura traz àquela família. Teijido traduz visualmente a transformação do espaço, marcando o ponto de virada da história com mudanças sutis, mas impactantes.

    Além da fotografia, o design de produção merece aplausos. A recriação do Rio de Janeiro dos anos 1970 é detalhista e impecável. Uma cena, em que Eunice e sua filha são levadas para interrogatório em um carro da polícia, é especialmente memorável pelo cuidado na representação da cidade da época. Figurinos, veículos e cenários são trabalhados com tanto esmero que enriquecem a experiência do espectador, transportando-o para o período retratado.

    As atuações elevam ainda mais o filme. Fernanda Torres é o grande destaque, entregando uma performance que revela sua versatilidade. Conhecida principalmente por papéis cômicos, a atriz surpreende com uma interpretação densa e emocional como Eunice Paiva, sendo forte candidata a uma indicação ao Oscar 2025. Selton Mello também brilha como Rubens Paiva, trazendo serenidade e afeto ao personagem. A química entre os dois é comovente, assim como a interação entre o casal e as crianças, que torna a dor da família ainda mais palpável.

    Um ponto alto do filme é a escolha de Fernanda Montenegro para interpretar Eunice em uma fase posterior da vida. A semelhança entre mãe e filha na vida real confere autenticidade e profundidade às passagens de tempo, além de proporcionar momentos de grande impacto emocional para o público.

    "Ainda Estou Aqui" é mais uma obra de peso no catálogo de filmes sobre a ditadura militar. Embora seja tecnicamente impecável e profundamente emocionante, há o risco de que, como tantos outros do gênero, seja subvalorizado pelo público. Ainda assim, é uma experiência cinematográfica indispensável, não apenas pela qualidade artística, mas também pela importância histórica que carrega.

Nota: 8/10