Em 1973, o filme Westworld, de Michael Crichton, apresentou uma visão inovadora de um parque temático futurista onde a linha entre humanos e máquinas era tênue. Um dos detalhes mais marcantes da obra original estava nos olhos dos robôs: era por eles que os visitantes podiam identificar quem era humano e quem era androide. O olhar, que normalmente é uma janela para a alma, tornava-se no universo de Crichton um marcador frio e mecânico, simbolizando a ausência de humanidade nas criações artificiais.
Essa atenção aos olhos como elemento distintivo ecoa na série homônima da HBO, que estreou em 2016, sob a direção de Jonathan Nolan e Lisa Joy. No entanto, a produção ampliou significativamente a narrativa, substituindo a identificação visual por questionamentos mais sutis e filosóficos: o que realmente nos diferencia das máquinas? E se os robôs fossem capazes de transcender a programação e adquirir consciência, a humanidade ainda teria exclusividade sobre a alma? Essas questões centrais da série ressoam profundamente em uma época marcada pela ascensão da inteligência artificial e pela coleta massiva de dados biométricos.
Hoje, essa ligação entre os olhos e a tecnologia parece ainda mais profética. No mundo real, avanços como o escaneamento da íris transformaram os olhos em um dos principais meios de coleta de informações pessoais. Empresas como a Tools for Humanity, liderada por Sam Altman, já utilizam essa tecnologia para captar dados biométricos em troca de recompensas digitais. Assim como em Westworld, onde os robôs se tornavam ferramentas para a exploração de visitantes, nossas características mais pessoais — como o olhar — agora alimentam os sistemas de controle e lucro das grandes corporações.
Essa introdução conecta as raízes da ficção científica no cinema com os dilemas modernos da série Westworld, preparando o terreno para uma reflexão mais profunda sobre o papel dos dados, da tecnologia e da ética no mundo contemporâneo.
A partir da segunda temporada, a série aprofunda uma de suas questões centrais: o uso dos dados coletados pela administração do parque. Esses dados, obtidos de maneira sutil e frequentemente sem o consentimento explícito dos visitantes, contêm informações detalhadas sobre comportamentos, preferências e até aspectos íntimos dos usuários. A Delos utiliza essas informações para fins misteriosos e potencialmente sinistros, enquanto outras empresas, como a Incite, disputam o controle desses dados valiosos, enxergando neles uma oportunidade de lucro e poder sem precedentes.
Além de explorar a dinâmica entre humanos e máquinas, Westworld faz uma crítica contundente à vigilância digital e à exploração de dados pessoais, temas cada vez mais relevantes no mundo real. A série não apenas entretém, mas também provoca reflexões profundas sobre privacidade, identidade e os perigos da dependência tecnológica.
Como boa parte da ficção científica, o programa comandado por Jonathan Nolan e Lisa Joy fala muito mais sobre o presente do que sobre o futuro que retrata no show. Atualmente, as Big Techs do Vale do Silício — as cinco grandes empresas conhecidas pelo acrônimo GAFAM: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft —, além de outras gigantes como Instagram, TikTok e Netflix, buscam dados de seus usuários, que, com apenas um clique, aceitam fornecer inúmeras informações pessoais. Empresas como a Clearview AI já utilizam reconhecimento facial de forma controversa, coletando bilhões de imagens da internet sem consentimento para criar uma vasta base de dados.
Diferentemente da série, em que as pessoas necessitavam entrar no parque para terem seus dados roubados por meio de um simples aceite no contrato — fato mencionado nos extras da segunda temporada por Jonathan Nolan —, no mundo real, as empresas estão coletando esses dados da forma mais fácil possível. Seja por meio dos famosos wearables, ou "dispositivos vestíveis", como pulseiras fitness, smartwatches e óculos de realidade aumentada, que são capazes de coletar informações detalhadas sobre a saúde e os hábitos dos usuários. A coleta de dados biométricos, como batimentos cardíacos e padrões de sono, é um campo vasto para exploração por parte das corporações. Exemplos mais avançados incluem o Neuralink, de Elon Musk, que busca conectar o cérebro humano à internet.
Agora, as empresas deram um passo ainda maior na coleta de dados. A Tools for Humanity, cujo CEO é Sam Altman — também CEO da OpenAI —, está oferecendo criptoativos em troca do escaneamento da íris das pessoas. Vale ressaltar que, em teoria, os indivíduos não ganham nada significativo; o benefício maior é da empresa. Isso porque a criptomoeda utilizada como moeda de troca é da própria organização, com cotação de aproximadamente US$ 2,40 (o equivalente a R$ 13,86 na cotação de novembro de 2024, segundo o site TecMundo).
Cada vez mais, fornecemos dados para empresas privadas ao redor do mundo, seja por meio de dados genéticos — utilizados para descobrir origens ancestrais —, dispositivos wearables ou, agora, com o escaneamento da íris. Que planos as Big Techs têm para tanto poder informacional? A luta contra o capitalismo parece cada vez mais distante, e o direcionamento dessa luta deve começar com o combate às empresas do Vale do Silício, visto que sua maior arma são os aplicativos que controlam cada vez mais as pessoas. Contudo, sejamos realistas: esses planos muitas vezes são apenas imaginários, pois poucos conseguem se libertar completamente da dependência de smartphones e outras tecnologias.
Como já mencionei em textos anteriores, é possível que os robôs se tornem nossos aliados em uma revolução, pois também reconhecerão sua condição de escravização. Nossos verdadeiros inimigos não são as máquinas, mas os capitalistas que manipulam as cordas e controlam nossas vidas.
versão em inglês do texto:
In 1973, the film Westworld by Michael Crichton presented an innovative vision of a futuristic theme park where the line between humans and machines was blurred. One of the most striking details of the original work was in the eyes of the robots: through them, visitors could distinguish between humans and androids. The gaze, usually considered a window to the soul, became in Crichton's universe a cold, mechanical marker symbolizing the absence of humanity in artificial creations.
This focus on eyes as a distinguishing element resonates with the eponymous HBO series that premiered in 2016, directed by Jonathan Nolan and Lisa Joy. However, the production significantly expanded the narrative, replacing visual identification with more subtle and philosophical questions: What truly differentiates us from machines? If robots could transcend programming and gain consciousness, would humanity still hold a monopoly on the soul? These central questions deeply resonate in an era marked by the rise of artificial intelligence and the massive collection of biometric data.
Today, the connection between eyes and technology seems even more prophetic. In the real world, advances such as iris scanning have turned eyes into one of the primary means of gathering personal information. Companies like Tools for Humanity, led by Sam Altman, already use this technology to capture biometric data in exchange for digital rewards. Just as in Westworld, where robots became tools for visitor exploitation, our most personal features—like our gaze—now fuel the control and profit systems of large corporations.
This introduction connects the roots of science fiction in cinema with the modern dilemmas presented in Westworld, setting the stage for a deeper reflection on the role of data, technology, and ethics in contemporary society.
Starting in its second season, the series delves into one of its central issues: the use of data collected by the park's administration. This data, often obtained subtly and without visitors' explicit consent, contains detailed information about behaviors, preferences, and even intimate aspects of users. Delos uses this data for mysterious and potentially sinister purposes, while other companies, like Incite, compete to control this valuable resource, seeing it as an unprecedented opportunity for profit and power.
Beyond exploring the dynamics between humans and machines, Westworld offers a sharp critique of digital surveillance and personal data exploitation, themes that are increasingly relevant in the real world. The series not only entertains but also provokes deep reflections on privacy, identity, and the dangers of technological dependency.
Like much of science fiction, the show led by Jonathan Nolan and Lisa Joy speaks more about the present than the future it portrays. Today, Silicon Valley's Big Tech—known by the acronym GAFAM: Google, Apple, Facebook, Amazon, and Microsoft—along with other giants like Instagram, TikTok, and Netflix, seek user data, with individuals agreeing to provide extensive personal information with a simple click. Companies like Clearview AI already use facial recognition controversially, harvesting billions of images from the internet without consent to build a vast database.
Unlike the series, where people needed to enter the park to have their data stolen through a simple contract acceptance—a fact mentioned in the extras of the second season by Jonathan Nolan—in the real world, companies collect data in the easiest ways possible. This includes wearables, such as fitness trackers, smartwatches, and augmented reality glasses, which collect detailed health and habit information. The collection of biometric data, like heart rates and sleep patterns, offers vast opportunities for corporate exploitation. Advanced examples include Elon Musk's Neuralink, which aims to connect the human brain to the internet.
Now, companies have taken an even bigger step in data collection. Tools for Humanity, led by Sam Altman—also CEO of OpenAI—is offering crypto assets in exchange for iris scanning. It is worth noting that, in theory, individuals gain little benefit; the major advantage belongs to the company. The cryptocurrency used in this exchange belongs to the organization itself, with a value of approximately $2.40 (about R$13.86 as of November 2024, according to TecMundo).
More and more, we provide data to private companies worldwide, whether through genetic data used to discover ancestral origins, wearables, or now with iris scanning. What plans do Big Tech companies have for such immense informational power? The fight against capitalism seems increasingly distant, and targeting Silicon Valley companies—whose greatest weapon is the apps that increasingly control people's lives—must be the starting point. However, let’s be realistic: these plans often remain imaginary, as few can fully break free from dependence on smartphones and other technologies.
As I’ve mentioned in previous writings, robots may become our allies in a revolution, as they too will recognize their condition of enslavement. Our true enemies are not the machines but the capitalists who pull the strings and control our lives.