Produções como Uma Linda Mulher e Enquanto Você Dormia alimentaram o imaginário romântico por décadas, mas carregavam fortes mensagens políticas. O discurso por trás dessas histórias sustentava a ideia de que mulheres trabalhadoras brancas estadunidenses poderiam encontrar uma vida feliz por puro acaso – seja nos braços de um príncipe encantado moderno, reencarnado na figura de um empresário bem-sucedido, como no filme estrelado por Julia Roberts, ou ao aceitar o amor que a vida lhe oferece, como ocorre na comédia romântica protagonizada por Sandra Bullock.
Sean Baker desconstrói essa narrativa em Anora, utilizando a estrutura básica do gênero para criar uma sátira social afiada. À primeira vista, o longa pode parecer um típico besteirol esquecido nos catálogos de streaming. Nas mãos de um diretor menos hábil, teria exatamente esse destino. A trama acompanha Ani, uma dançarina de clube noturno que leva a vida como pode até cruzar o caminho de um jovem russo, filho de um oligarca bilionário. Com recursos ilimitados, o rapaz a arrasta para seu mundo de excessos, festas e luxo, culminando em um pedido de casamento impulsivo em Las Vegas, prontamente aceito. Tudo parece seguir o caminho das comédias românticas convencionais, até que a família do noivo e seus capangas entram em cena determinados a anular a união.
A grande diferença entre Anora e outras comédias contemporâneas está no subtexto: o filme funciona como uma metáfora para o colapso do sonho estadunidense. Se antes os Estados Unidos eram a terra das oportunidades, onde bastava esforço para prosperar, hoje o que se vê são trabalhadores nativos e imigrantes presos a subempregos, lutando para sobreviver em uma economia que já não os favorece. Ani, ou Anora, como prefere ser chamada, é um reflexo dessa realidade – alguém que aceita dançar no colo de desconhecidos em busca de dinheiro rápido, mas que se agarra a qualquer oportunidade de escapar da precariedade.
Outro elemento interessante do filme é a inversão dos novos senhores do poder. Se antes os magnatas estavam concentrados nos EUA, agora muitos deles estão espalhados pelo Leste Europeu, Oriente Médio e Ásia. Os Estados Unidos, por sua vez, tornaram-se um território nostálgico, cada vez mais dependente do turismo e da glória de um passado que não se sustenta no presente – um destino semelhante ao que o próprio país impôs a nações outrora rotuladas como "terceiro mundo".
A única ressalva está na forma caricatural como os russos e armênios são retratados, emulando figuras que parecem saídas de Borat ou de um vilão exótico de 007. No entanto, o filme se redime à medida que avança, até chegar a um desfecho surpreendente.
Ao obter a anulação do casamento, Ani se aproxima de Igor, um dos capangas da família, e o roteiro sugere que a história seguirá a típica estrutura da comédia romântica estadunidense – onde a protagonista, rejeitada por um homem, dá a volta por cima e encontra um novo amor. Mas Baker subverte essa expectativa. Ani recusa o caminho fácil, seja por não estar apaixonada ou por se recusar a repetir o ciclo de submissão.
Muitos apontaram Anora como um filme monótono ou que não desenvolve bem sua protagonista, o que me parece uma leitura equivocada. Ao longo da trama, a personagem ganha profundidade e, apesar da natureza de seu trabalho, nunca é reduzida a um mero objeto de cena. Sean Baker utiliza o formato do besteirol cômico para abordar a tragédia americana contemporânea: a ilusão de que o topo foi alcançado, quando, na verdade, tudo está ruindo.
No fim, Anora é uma fábula que se recusa a ter um final feliz. Porque, na vida real, muitos trabalhadores americanos jamais terão seu happy end – e sequer um roteiro digno de filme.