Uma obra-prima de concreto e desilusão.
Hollywood
possui um vasto acervo de filmes que exploram a trajetória do imigrante que
parte para o "Novo Mundo" em busca de oportunidades. Essa narrativa
reforça a imagem dos Estados Unidos não apenas como a terra da liberdade, mas
também como um espaço de ascensão para aqueles dispostos a integrar a
"grande nação".
Dentro desse
contexto, o diretor Brady Corbet opta por um caminho oposto. Em vez de
perpetuar essa tradição e glorificar a chegada do imigrante à chamada
"terra das oportunidades", ele subverte essa perspectiva,
apresentando uma trama que desconstrói o sonho americano e expõe a realidade
muitas vezes dura enfrentada pelos recém-chegados nos EUA.
O Brutalista, que estreia nos cinemas em 20 de fevereiro, recebeu 10 indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Ator e Diretor. Protagonizado por Adrien Brody, Felicity Jones e Guy Pearce, o longa não apenas retrata diferentes momentos da suposta prosperidade dos Estados Unidos, mas também demonstra como as produções culturais dialogam mais com o presente do que com o passado, ainda que a narrativa se passe a partir do final da década de 1940.
Fugindo da
Europa devastada no pós-guerra, o arquiteto visionário László Toth busca
recomeçar sua vida nos Estados Unidos. Além de reconstruir sua carreira, ele
tenta restaurar o casamento com Erzsébet, após a separação forçada por mudanças
de fronteiras e regimes durante o conflito. Sozinho em um país desconhecido,
László se estabelece na Pensilvânia, onde seu talento para a construção
desperta o interesse do poderoso industrial Harrison Lee Van Buren. No entanto,
sucesso e legado cobram um preço alto — e nem todos estão dispostos a pagá-lo.
Corbet entrega um épico ambicioso, abordando um tema pouco explorado no cinema: a arquitetura. Contudo, sua ambição vai além do tema em si, refletindo-se na condução da trama ao longo de 3 horas e 36 minutos. A escolha da distribuidora de incluir um intervalo de 15 minutos para o público, talvez por insegurança quanto à recepção do filme, pode não ser a melhor decisão, mas não diminui a potência da direção, das atuações e dos temas abordados.
Embora O Brutalista não seja baseado em eventos reais, há semelhanças notáveis entre László Toth e Marcel Breuer, um dos principais nomes da arquitetura brutalista. Ambos são oriundos da Bauhaus e do Leste Europeu—László de Bucareste e Breuer da Hungria—e compartilham uma abordagem inovadora que combina funcionalidade e estética arrojada. A interseção entre ficção e realidade se torna evidente quando László, recém-chegado aos EUA, encontra abrigo na casa de seu primo, dono de uma loja de móveis. O arquiteto projeta uma mesa e uma cadeira que remetem à icônica Cadeira Wassily, criada por Breuer em 1925, um marco do design moderno caracterizado pelo uso pioneiro de tubos de aço dobrados.
Essa referência sutil não apenas homenageia a obra do arquiteto húngaro, mas
também reforça o impacto da Bauhaus na construção da
identidade visual do século XX. Além disso, a trajetória de László ecoa a de
Breuer, que, após deixar a Europa devido ao crescimento do nazismo, encontrou
nos Estados Unidos um novo lar, consolidando sua carreira com projetos que redefiniram
o conceito de modernismo, como o Whitney Museum of American Art.
A estrutura do longa é dividida em capítulos. O primeiro, "O Enigma da Chegada", cobre o período de 1947 a 1952, desde a chegada de László aos EUA. O segundo, intitulado "Núcleo da Beleza", expande a narrativa, culminando no terceiro e último capítulo, "Primeira Bienal de Arquitetura".
Desde os
primeiros dez minutos de filme, Corbet evidencia a grandiosidade de sua obra ao
inovar na exibição dos créditos. Apresentados horizontalmente na tela, eles
surgem sobre a imagem de uma estrada na perspectiva de um ônibus, com detalhes
gráficos em linhas retangulares que remetem à estética brutalista e seus blocos
de concreto.
O que se destaca em O Brutalista é a dicotomia que permeia a trama, especialmente na relação entre László (Adrien Brody) e Harrison Lee Van Buren (Guy Pearce). Enquanto o arquiteto enxerga a arte como expressão, significado e propósito, o magnata a vê apenas como um símbolo de status, algo a ser possuído e exibido, mas nunca compreendido.
Essa dinâmica se evidencia logo no início do filme, quando os filhos de Van Buren, Harry Lee (Joe Alwyn) e Maggie Lee (Stacy Martin), encomendam, junto à empresa de Attila (Alessandro Nicola), primo de László, uma biblioteca para o pai. No entanto, ao retornar para casa, Van Buren sequer nota a obra arquitetônica. Sua cegueira artística revela uma verdade incômoda: para a elite, a arte não existe enquanto criação ou expressão, mas apenas como mercadoria. Ele só passa a "enxergá-la" quando uma revista especializada a enaltece, pois, a partir desse momento, a obra se converte em capital simbólico, passível de ser transformado em status social.
O filme
denuncia essa apropriação vazia da arte pela elite, que se apresenta como
mecenas, mas, na realidade, instrumentaliza o trabalho dos artistas para
reforçar sua posição de prestígio. Van Buren não consome arte, ele a acumula.
Não valoriza a criação, apenas o reconhecimento que ela pode lhe proporcionar.
Para os capitalistas, a arte não é cultura, tampouco expressão — é um troféu.
Além disso, o
longa também discute a experiência do imigrante nos Estados Unidos e o mito do
sonho estadunidense. O fato de que alguns poucos migrantes consigam alcançar
esse ideal não significa que ele seja acessível a todos. O roteiro, assinado
por Mona Fastvold em parceria com Corbet, trabalha essa questão com
profundidade, especialmente por meio da trajetória de Attila. Para alcançar o
American way of life, ele precisa renunciar à sua identidade. Não basta
conquistar uma vida nos Estados Unidos; é necessário assimilar sua cultura e
seus hábitos para ser aceito. No entanto, mesmo ao tentar se encaixar, sua
origem nunca deixa de ser um marcador social. Ele pode mudar de nome e
adaptar-se às convenções locais, mas a sociedade ao seu redor jamais o deixará
esquecer quem ele realmente é e de onde veio.
A abordagem do filme sobre imigração e pertencimento é construída com sutileza e camadas, tornando-se um dos pontos altos da narrativa. O Brutalista não apenas reflete sobre a arquitetura, mas sobre a construção de identidades em meio a um mundo que nem sempre está disposto a acolher aqueles que vêm de fora. Isso fica bem evidenciado quando László informa que estudou na Bauhaus e que possui todo um know-how, afirmando que a biblioteca está longe de ser seu maior trabalho.
Para os
ocidentais — entenda-se aqui EUA e Europa Ocidental — apenas eles detêm o
verdadeiro conhecimento. Quando Erzsébet (Felicity Jones) consegue migrar para
os EUA, em uma conversa com Van Buren, ela deixa claro que não é uma qualquer.
Ao ser questionada sobre seu inglês impecável, responde que estudou em Oxford e
se formou em jornalismo com foco em relações internacionais. Para essa
mentalidade ocidentalista, apenas eles são os verdadeiros detentores do saber e
do conhecimento.
Mas o ponto talvez mais forte e simbólico do longa seja o estupro sofrido por László. Quando ele e Van Buren viajam para a Itália para encomendar mármore, após ficar alcoolizado, o arquiteto acaba caindo em um local afastado da festa. Van Buren vai atrás dele e começa a discursar, afirmando que o povo de László sempre comete atos vergonhosos e deploráveis. Enquanto fala, ele se aproveita da vulnerabilidade do arquiteto e o estupra ali mesmo, no chão, ao som da canção You Are My Destiny, interpretada por Mina Mazzini. Por mais que seja uma música romântica, quando o ato termina, a cena corta de volta para a festa, encerrando-se no exato momento em que ouvimos a frase "That's what you are" — "É isso que você é" —, reforçando a brutalidade da mensagem: para Van Buren, László não passa de um imigrante que ousou acreditar ser algo mais*.
O longa é claro, não seria um grande épico, sem sua direção competente. Brady Corbet faz um trabalho sensacional, primeiro, porque a trama se desenvolve em um bom ritmo nas suas 3h36 minutos, um feito espetacular, ao nível de Oppenheimer, que tem 36 minutos a menos. Com isso percebe-se que a direção de Corbet é certeira. Não apenas isso, o diretor consegue, em vários momentos, exaltar de forma sutil, mas muito competente, o título brutalista para sua direção, que se completa com o trabalho do diretor de fotografia Lol Crawley, momentos que se aproveitam da falta de iluminação para esconder a vergonha ou até mesmo descaracterizar um personagem que perdeu sua identidade.
Mas o ápice de O Brutalista está nas atuações dos atores, em especial para o trio principal: Adrien Brody, Felicity Jones e Guy Pearce. Brody, que já provou desde seu primeiro longa que é um excelente ator, volta com toda a potência após anos em papéis menores e escolhas duvidosas de filmes. Seu László Toth é intenso, visceral, mas cheio de fraquezas e falhas. O ator tem todas as chances de receber mais um prêmio por sua atuação.
O
Brutalista é um épico
incrível e brutal como o estilo arquitetônico que define sua trama. Assim como Anora,
ambos os filmes apresentam a desconstrução do sonho estadunidense. É incrível
pensar que os dois longas concorrem entre si nas principais categorias. Tratado
de forma totalmente oposta, ambos abordam o mesmo assunto em épocas diferentes,
mas falando do tempo atual. O Brutalista é o típico filme que precisa
ser consumido no cinema, devido à sua grandiosidade e qualidade.
Nota:
8,5/10
*O camarada Pedro Henrique chamou minha atenção para esse detalhe da cena e como o corte com a música reforça a violência simbólica da sequência.