Mickey 17 | Crítica com Spoiler

Mickey 17 é a ficção científica que desafia a lógica do descartável – e pode fazer você repensar seu próprio lugar no sistema.


No sistema atual, o trabalhador é tratado como descartável. Se um vai embora, logo outro ocupa seu lugar. Mas sejamos sinceros: essa lógica não nasceu com o capitalismo moderno. A prática de descartar a mão de obra é tão antiga quanto as primeiras civilizações e, provavelmente, continuará no futuro.

É dentro dessa premissa que Bong Joon-ho adapta Mickey 7, de Edward Ashton, para os cinemas. O diretor sul-coreano, vencedor do Oscar por Parasita, constrói aqui uma ficção científica carregada de reflexões sociais e políticas. O filme se apropria do conceito de replicação humana para questionar a exploração do trabalhador e, de quebra, provoca o espectador com críticas nada sutis ao ex-presidente dos EUA, Donald Trump.

    A trama acompanha Mickey Barnes, um homem que, para escapar de agiotas, se torna um "expendable" – uma espécie de trabalhador descartável enviado para missões perigosas fora da Terra. Sempre que morre, suas memórias são restauradas em um novo corpo, pronto para continuar o trabalho. No entanto, após inúmeras regenerações, Mickey 17 sobrevive a uma missão fatal e se depara com sua próxima versão, Mickey 18, criando um impasse existencial: se ele ainda está vivo, qual dos dois deve continuar?

    A sátira política ganha forma com Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), um ex-líder populista que perdeu a reeleição e, agora, é tratado como um pária pela elite. No entanto, sua popularidade entre as massas continua intacta, principalmente entre aqueles que o seguem sem questionamentos. O retrato de Marshall pode ser lido como uma referência direta a Trump, mas Bong Joon-ho vai além: a figura do político que resiste no imaginário popular mesmo após ser rejeitado pelo sistema é um fenômeno recorrente, e o filme o utiliza para refletir sobre o poder da manipulação e da alienação coletiva.

    Essa lógica, no entanto, entra em choque com a própria trajetória de Mickey. Embora seja considerado descartável, ele se revela insubstituível, pois ninguém quer assumir seu trabalho. A pergunta recorrente – "como é morrer?" – reforça essa ideia, deixando claro que sua posição é única e indesejada. A questão se repete porque aqueles ao seu redor têm apenas uma vida para viver; são, de fato, descartáveis e substituíveis. Mickey, por outro lado, não é. Mesmo com suas inúmeras versões, continua sendo único.

Por isso, os “múltiplos” são proibidos – não porque poderiam servir como álibi para assassinatos, mas porque representam algo mais perigoso: a noção de singularidade dentro de um sistema que precisa da substituição constante para se manter. Se um trabalhador pode ser replicado indefinidamente e, ainda assim, continuar sendo o mesmo, a ideia de que todos são peças intercambiáveis desmorona. Mais do que isso, os múltiplos sugerem a possibilidade de união e identidade coletiva – algo que o sistema teme, pois a verdadeira força da classe trabalhadora está justamente na solidariedade e na luta conjunta contra sua própria condição de descartabilidade.

    Essa discussão se traduz visualmente na fotografia do longa. As cenas que retratam os trabalhadores são dominadas por tons frios e opacos, com o verde escuro e o cinza criando uma atmosfera opressora e monótona. Em contraste, os ambientes da elite brilham em vermelho e amarelo, cores que saltam à tela, transmitindo poder e exclusividade. Essa distinção cromática não apenas reforça a desigualdade social, mas também ecoa o estilo visual de Expresso do Amanhã, outra obra de Bong Joon-ho que denuncia a estratificação de classes.

    O filme também abre espaço para discutir colonialismo. A missão espacial em que Mickey se encontra não é uma simples exploração científica, mas uma ocupação. Os humanos enxergam o novo planeta como um território a ser conquistado, sem considerar os habitantes locais. Essa cegueira imperialista ressoa na incapacidade histórica das potências de se verem como invasoras, uma crítica sutil, mas contundente, às lógicas expansionistas que moldaram a história da humanidade.

    No fim, Mickey 17 não é apenas um filme de ficção científica. É um espelho distorcido do mundo real, que questiona nossa relação com o trabalho, o poder e a própria identidade.

Nota: 7,5