Coogler compõe um blues de sangue e silêncio. Pecadores é o grito que atravessa séculos de apagamento e ecoa onde a arte nasceu: no corpo que sobreviveu.
Filmes de terror vão muito além de provocar medo. Muitas vezes, funcionam como alegorias potentes: usam monstros, fantasmas e ameaças sobrenaturais para representar temores reais — sociais, políticos ou existenciais. Mais do que entreter, esses filmes são denúncias disfarçadas, espelhos distorcidos que expõem o que há de mais sombrio na sociedade e nas relações humanas.
O novo filme do diretor Ryan Coogler, estrelado por Michael B. Jordan, Tenaj L. Jackson, Miles Caton e Jack O’Connell, é um ótimo exemplo disso. Pecadores é uma nova e ousada visão do terror. Na trama, irmãos gêmeos (interpretados por Jordan) decidem deixar para trás suas vidas turbulentas e retornar à cidade natal em busca de um recomeço. Mas o que encontram por lá é ainda mais sombrio: um mal antigo os espera de braços abertos, pronto para trazê-los de volta ao passado que tentavam esquecer.
A premissa não é inovadora, mas Coogler consegue transformar algo já conhecido em uma obra impactante e cheia de camadas. Os irmãos, conhecidos pelos apelidos de Fumaça (com roupas azuladas) e Fuligem (com detalhes em vermelho), voltam de Chicago com o plano de abrir um clube noturno para negros em sua cidade natal. Com dinheiro suficiente para comprar um terreno pertencente a um homem branco ligado à KKK, eles montam um projeto ambicioso, que conta com o primo mais novo, Sammie Moore (Miles Caton), um talento no blues. Com boa música, bebidas de qualidade e um espaço bem localizado, nada parecia dar errado — exceto por um detalhe: um vampiro passa a assombrar o clube, encurralando suas vítimas ali dentro.
É impossível assistir a Pecadores e não se lembrar de Um Drink no Inferno, filme de vampiro dos anos 1990 dirigido por Robert Rodriguez e protagonizado por Quentin Tarantino e George Clooney. Lá também temos dois irmãos de personalidades diferentes enfrentando uma ameaça sobrenatural em um bar. Mas enquanto Drink é um bom filme de ação vampiresca, Pecadores vai além. Coogler se utiliza do terror como crítica, para lembrar a todos quem inventou o blues, quem carregou nas costas o nascimento do rock and roll, e faz isso de forma simbólica e potente. Os vampiros, neste caso, não são apenas monstros: representam aqueles que se alimentam da criação alheia, que sugam vidas e memórias — assim como a indústria e a história branca se alimentaram da cultura negra, apagando seus autores e colhendo os louros.
Pecadores é um filme sobre música, sangue e identidade. Um longa que fala de vampiros, mas que denuncia algo bem real: o roubo simbólico, a apropriação e o apagamento de quem sempre criou sob dor e resistência. É terror, sim. Mas também é memória, crítica e arte.
O longa não apenas faz a denúncia, mas resgata nas referências uma das figuras mais importantes e misteriosas do blues: Robert Johnson, o lendário cantor, compositor e guitarrista negro que, segundo a lenda, vendeu sua alma ao diabo na encruzilhada das rodovias 61 e 49 em Clarksdale, no Mississippi. Mas, assim como a história de Johnson foi esquecida e apagada por uma cultura que se apropriou do que foi criado por mãos negras, Pecadores nos alerta para esse processo por meio da alegoria construída em seu vilão: Remmick (Jack O’Connell), um vampiro que, ao escutar a música de Sammie, deseja possuí-lo, sugá-lo e se apropriar de sua arte e de sua herança.
O blues não é apenas música — é história contada em métrica musical. Mais do que isso, é um código emocional coletivo, uma forma de dizer o indizível. Nascido nos campos, nas prisões e nas igrejas, o blues deu voz a quem era constantemente silenciado. Assim como os griôs, figuras ancestrais da cultura africana ocidental responsáveis por transmitir oralmente os saberes e as memórias dos povos, o blues tem a função de conservar e perpetuar a história do povo negro estadunidense. Foi a partir do blues que nasceram gêneros como o jazz, o soul, o R&B e o próprio rock — toda a música popular contemporânea carrega sua marca. É importante destacar que Ryan Coogler já havia feito referência aos griôs no universo de Pantera Negra, ao nomear a inteligência artificial de Wakanda com esse termo — um gesto simbólico que, mais uma vez, demonstra sua sensibilidade em usar a cultura pop como ferramenta de resgate e consciência histórica.
Outro exemplo interessante de como o blues é retratado no cinema está em A Encruzilhada (1986), filme estrelado por Ralph Macchio, o eterno garoto de Karatê Kid. Nele, acompanhamos um jovem guitarrista branco que deseja dominar o blues. No fim, o clímax se dá em uma batalha musical entre dois homens brancos, usando a linguagem negra como instrumento de disputa. É simbólico — e um tanto irônico — ver a cultura afro-americana sendo colocada como cenário, enquanto os protagonistas se apropriam da estética e da força do blues sem carregar seu peso histórico. Pecadores corrige esse percurso: aqui, o blues volta para as mãos de seus verdadeiros herdeiros.
Aqui, o griô é Coogler, com sua analogia vampiresca para resgatar e denunciar o blues. Pode parecer desnecessário tal movimento, mas quando olhamos para a história da música e vemos Elvis como "rei do rock" e não uma figura negra, ou quando assistimos a De Volta para o Futuro e vemos que um menino branco é quem influencia Chuck Berry, percebemos que Pecadores é um filme para dizer como os brancos se apropriaram da cultura negra. Como bem se diz nas linhas de diálogo do longa: "Os brancos gostam muito de blues, mas não das pessoas que o fazem". Gostam o bastante para roubarem e darem sua própria marca.
A trama ainda levanta uma questão que impera até os dias atuais: qual o papel das pessoas pardas no mundo? Elas não são nem brancas nem negras; vivem em uma linha tênue. Para levantar esse debate, a atriz Hailee Steinfeld interpreta Mary, o interesse romântico de Fuligem.
No início do longa, vemos o personagem Sammie chegando à igreja de seu pai com uma parte da guitarra nas mãos. Há aqui uma simbologia clara: o blues não saiu das mãos dos negros, e é nas suas mãos que ele vai ficar. Não que brancos não possam expressar essa arte, mas que não se esqueça a quem ela pertence e qual é sua verdadeira origem. Como artistas muitas vezes ignorados como Ma Rainey, Bessie Smith, Son House e Lead Belly, o blues foi sustentado por vozes negras que moldaram a alma da música norte-americana — e que, como Robert Johnson, foram muitas vezes apagados da história.
Os simbolismos do longa vão desde as cores dos irmãos interpretados por Michael B. Jordan — azul e vermelho, cores antagônicas — até os contrastes de suas personalidades. Mas as qualidades do filme vão além da trama e da imagética por trás do roteiro. Pecadores tem uma direção forte de Ryan Coogler, que domina e utiliza bons planos-sequência para criar tensão nas cenas, além de momentos estéticos impactantes. O elenco também é um componente que enriquece o desenvolvimento do filme. O ator Delroy Lindo interpreta Delta Slim, um músico de blues que enfrentou muita coisa e sabe que sua influência vai deixar legado para os novos artistas. Miles Caton entrega um excelente Sammie Moore: um jovem que sabe o que quer, mas ainda tem muito a aprender. Sua atuação expressa bem esse percurso de amadurecimento e o olhar de admiração que tem pelos primos.
Pecadores é um excelente filme, com muitas camadas. Camadas essas que nem todas abordei aqui, até porque seria interessante reassistir ao longa para aprofundar as questões levantadas. Mas já fica a dica: é uma ótima pedida para o final de semana prolongado, especialmente para quem mora no Rio de Janeiro. Não deixem de assistir ao filme no cinema — e sim, esperem pelas cenas pós-créditos, que valem muito a pena.
Nota: 9/10